Histórias sem história

Apenas mais algumas histórias baseadas em fatos nada reais que minha cabeça louca inventou para escrever.

domingo, 13 de novembro de 2011

Lyra Foster

            Capítulo Dois

                      Bom apetite, Bartolomeu!

            Quando pensei em ir morar com minha tia avó, eu já sabia que era um lugar com muitas casas bonitas e mansões gigantescas, mas sempre imaginei a casa da minha tia como uma casa de quatro quartos, grande, mas simples.
            A casa que surgia pela janela era muito mais do que isso.
            Pelo que calculei, só a fachada da casa já indicava, no mínimo, seis quartos. Era uma casa bege com janelas e portas em branco... uma casa. Não, aquela era a maior mansão que eu já havia visto em toda a minha vida. Talvez por não estar prestando muita atenção no resto do caminho, mas a maior casa da cidade onde minha mãe morava não chegava nem à metade daquela. A mansão tinha 3 andares, muitas janelas, e a porta da frente era totalmente trabalhada com vitrais coloridos majestosos.
O jardim tinha uma fonte que jorrava uma água muito cristalina sobre o mármore branco, os arbustos perfeitamente podados circundavam algo que provavelmente era a piscina, haviam muitas flores e muitas árvores espalhadas por todos os cantos. A grama era do verde mais verde que se possa imaginar e perfeitamente cortada, haviam algumas pessoas cuidando do jardim e todas cumprimentaram Sebastião e tia Rose quando passamos. Eu estava tão maravilhada com o local que nem sequer notei o lindo  border collie até ele se sentar na minha frente e eu quase tropeçar no cão.
            - Ah, parece que você já conheceu Brietta. Ela e o irmão são os cães da casa. Onde está Bubba, Marie?- Minha tia perguntou a uma das mulheres que cuidava do jardim.
            - Provavelmente dormindo lá atrás, senhora.- Respondeu Marie, com um sorriso tímido no rosto. Ela também era jovem, parecia ter cerca de 15 anos, e olhava fixamente para Sebastião.
            - Olá Brietta.- Disse, enquanto acariciava o pelo sedoso da cadela.
            - Parece que ela gostou de você.- Minha tia comentou.- Agora vamos indo, quero lhe mostrar o quarto.
            Deixei Brietta para trás e voltei a seguir minha tia. Passamos pelo hall de entrada, que continha um tapete vermelho retangular, um espelho dourado e uma mesinha com um vaso de flores sobre ela e as paredes pintadas de bege acompanhadas pelo chão de madeira. Mas assim que entramos na sala de estar, meus olhos se encheram com os detalhes magníficos do lugar.
            Havia uma escadaria de mármore branco em um dos cantos da sala com um tapete vermelho completando a beleza dos degraus, a lareira exibia seu fogo acolhedor, deixando o espaço com um toque caseiro, os sofás, vermelhos, eram dos mais finos e aparentemente confortáveis que eu já havia visto, havia um tapete persa no meio da sala e a madeira no chão parecia brilhar. Algumas prateleiras com livros de capa dura estavam encostadas na parede e havia um lustre de cristal roubando toda a atenção do lugar. Alguns quadros pintados a mão e vasos esculpidos com todos os detalhes possíveis completavam a beleza do lugar. Eu não sabia para onde olhar e não conseguia acreditar que aquela era a minha nova casa e não um hotel de luxo onde pessoas que ganham na loteria ficam por alguns dias.
            -Gostou da minha sala de estar?- Minha tia perguntou, acordando-me do meu transe.
            - Sim, é... é magnífica!
            -Meu marido apreciava muito as cores vermelho e dourado como pode ver. Pedi para manter as paredes em bege para que não ficasse muito poluída a visão. Fizemos tudo juntos, sabe? Éramos muito unidos.
            -É tudo tão lindo! Parece um sonho.
            -Espere até ver seu novo quarto, você vai adorar.- Ela olhou para mim e pareceu preocupar-se- Você gosta da cor rosa, minha querida?
            -Sim, gosto sim.
            - E branco?
            -Sim, sim, gosto.
            -Nesse caso, você vai amar o quarto!- Sua expressão voltou ao antigo sorriso e a calma. Eu não conseguia desgostar de tia Rose, ela era a pessoa mais alegre que eu já conhecera.
            Subimos as escadas de mármore e ela me guiou por um longo e largo corredor até pararmos em frente à uma porta branca, como muitas outras no mesmo corredor.
            -Aqui é seu quarto, minha querida.- E tia Rose abriu a porta.
            Meu primeiro passo para dentro do quarto novo e eu logo senti o tapete macio e peludinho em baixo do meu sapato. O quarto era realmente perfeito, era como um daqueles quartos que as princesas dos filmes Barbie que Sarah assistia dormiam. Havia uma cama de casa redonda coberta por um cortinado branco cheio de cristais pendurados, o chão de madeira clara estava perfeitamente encerado e o tapete em que eu pisava era do meu tom de rosa preferido: nem muito escuro, nem muito claro. As paredes eram rosa bebê e, em uma delas, haviam muitas borboletas pintadas no mesmo tom de rosa do tapete e os rodapés eram brancos. O guarda roupas de madeira, muito delicado e cheio de detalhes era branco também, assim como a penteadeira, a escrivaninha, as molduras das pinturas e todos os detalhes do quarto, como caixinhas de jóias, o pé do abajur  e a cabeceira da cama.
            -Eu não sabia de que tamanho você estava, mas comprei algumas roupas para você.- Tia Rose abriu o guarda-roupas, um guarda roupas tão grande que eu não imaginei que alguém pudesse ter algo assim.
            Na parte dos cabides, haviam lindo vestidos dos mais variados comprimentos, cores e modelos, nas prateleiras haviam pequenas pilhas de roupas organizadas por cor em dégradé e, em uma outra porta, haviam muitos pares de sapatos meigos e delicados. Todas as roupas pareciam servir perfeitamente em mim.
            -Certo, admito que sua mãe me deu alguma dicas sobre que número você calça e que tamanho você usa. Você gostou do quarto?- Ela parecia tão ansiosa e nervosa para me agradar que achei um pouco engraçado. Minha mãe sempre tentou me agradar, mas nunca chegou a um ponto tão incrível. Certo, minha mãe nunca teve dinheiro para tanto, mas sempre foi muito justa e nunca pensou em mimar nem a mim, nem a Sarah. Provavelmente eu sairia muito mal acostumada da casa de tia Rose.
            -Sim, nossa, nem sei como agradecer.
            -Bem, aquela porta do guarda-roupas da para um banheiro.- Ela apontou para a porta do meio- É interessante a ideia, não? Eu e meu marido adorávamos passagens secretas, a casa é cheia delas, então em todas as reformar eu mantive a tradição. Para me agradecer, tome um banho quente na sua banheira, relaxe, coloque um pijama confortável e durma um pouco. Você parece estar muito cansada.
            -Obrigada tia. Acho que foi o que eu mais lhe falei até agora, não é? Infinitamente obrigada, você é a melhor tia avó que eu poderia querer.- Tia Rose sorriu, piscou para mim e saiu do quarto.
            Eu não conseguia acreditar em tudo o que estava me acontecendo. Agora eu tinha uma suíte maravilhosa, uma banheira só para mim, roupas lindas, tudo o que eu sempre sonhei. Me sentia mimada como nunca.
            Entrei na banheira cheia de espuma e deixei minha cabeça viajar para muito longe dali. Era tão relaxante estar ali, mergulhada em espuma até o pescoço, vendo os longos fios de meus cabelos negros misturados na espuma muito branca e minha pele pálida relaxando depois de uma viagem longa e cansativa. O sol já havia desaparecido no horizonte e a luz da lua infiltrava-se pela janela do banheiro. Tudo ali era tão... perfeito.
            Minha mente estava relaxada e pensando em absolutamente nada pela primeira vez o dia todo. Era uma sensação nova, uma vida nova, um jeito novo de vida e tudo parecia ser exatamente como um sonho. A única coisa que poderia estragar um momento assim era acordar. Mas algo me dizia que aquilo não era um sonho, que minha nova vida consistia realmente naquele paraíso.
            Eu estava completamente mergulhada em um monte de nada, meu corpo estava relaxado e eu realmente não pensava em acordar quando de repente alguma coisa áspera passou pela minha mão. Levantei-me da água em um susto e molhei boa parte da região em volta da banheira. Havia um gato preto parado ao lado da banheira, sentado com a expressão mais solene que um gato pode ter. O felino, que agora eu desconfiava ser uma fêmea, usava uma coleira larga no pescoço com um grande diamante em forma de gota pendurado na ponta. O gato me fitava com seus grandes olhos verdes e arredondados e uma pose de realeza de me fez pensar, por um segundo que aquele felino tinha uma alma humana. Alma, eu nem sequer acreditava nessa baboseira! Me aproximei da gata e ela não se mexeu, apenar me seguia com os olhos. "Tia Rose não me disse que tinha uma gata" pensei, um pouco confusa "e como ela entrou aqui?". Peguei o diamante e virei para ver se tinha algo escrito na parte de trás "Genevive Foster McFlury, pertence à Rose Foster McFlury". É, pelo jeito a gata realmente era de casa.
            - Lyra?- Chamou minha tia do lado de fora da porta- Desculpa incomodar seu banho, mas o jantar está na mesa.
            -Eu já estou saindo, tia. Acho que sua gata está aqui.
            -Oh! Genevive? Vocês já se conheceram então! Ela é um amor de gata, viu? Com certeza vai gostar muito dela.- A gata ronronou em resposta.
            -Ela parece um amor...
            Genevive saiu do banheiro e pude ouvir minha tia mimando a gata com todos os seus "fofura", "docinho" e elogios do gênero. Me enrolei no roupão de seda branco que estava pendurado ao lado da banheira e calcei as pantufas coloridas que minha mãe me dera à algum tempo e saí do quarto. Minha tia e Genevive já não estavam mais lá, o que me deu tempo para escolher uma das roupas para usar. Haviam duas gavetas lotadas de pijamas de vários tipos. Eu não sabia se precisava mesmo sair para comprar roupas no dia seguinte. Coloquei uma camisola de algodão muito leve e realmente bonita, provavelmente o pijama mais adorável que eu já tive, e desci as escadas para procurar por minha tia no andar de baixo.
            Minha tia estava sentada com Genevive em seu colo no sofá em frente da lareira. Agora ela usava um vestido azul marinho de mangas compridas, um salto alto e os cabelos presos em um coque. Nunca imaginei que alguém trocasse de roupa apenas para jantar em casa, mas ainda assim me senti deslocada por estar de pijama.
            -Querida... hã... você não está muito acostumada a jantar aqui ainda, não é?
            -Nunca jantei aqui, mas... você vai receber visitas?
            -Oh não, eu planejei um banquete amanhã para apresentar você aos meus amigos e vizinhos. Hoje é apenas um jantar cotidiano.
            - Então porque está tão arrumada?
            -Por quê não estaria?
            - Bem... você está em casa, não é?
            -Sim, mas meus empregados estão sempre por perto, então gosto de me arrumar.- Tia Rose analisou minhas roupas.- Mas se você se sente mais confortável  assim, fique a vontade. Você está em casa, pode se vestir como quiser.- Tia Rose sorriu, um pouco sem jeito com minha falta de costume a vida luxuosa.
            Saímos da sala e seguimos até a sala de jantar. Havia uma mesa se mármore muito comprida com apenas dois pratos colocados e muita variedade de comida espalhada por ali. Os empregados estavam colocados nos cantos da sala, prontos para servir qualquer coisa que precisássemos e uniformizados como empregados de filmes e novelas. Aquilo era tão estranho, eu me sentia em um estúdio cinematográfico pronta para gravar uma daquelas cenas absurdamente falsas onde as pessoas sentam uma em cada ponta da mesa e conversam sobre algum drama impossível. Aquilo era tão surreal...
            - Sente-se- Disse tia Rose apontando para uma cadeira que uma empregada havia puxado para mim. Sorri para ela, mas ela apenas abaixou a cabeça e se retirou sem me retribuir o sorriso. Me sentei na cadeira achando estranha a forma que a empregada se retirou. Ela parecia, de certa forma, assustada...
            Passei a analisar a decoração a minha volta: não havia nada muito grandioso ou que chamasse atenção, a não ser a grande mesa, o lustre de cristal que iluminava o ambiente e o quadro enorme pintado a mão de um homem de prováveis 35 anos. O resto da decoração consistia apenas em cortinas vermelhas e gigantescas para cobrir as janelas muito longas e bem acabadas. Por quê tudo ali era tão grande?
            -Era seu marido?- Perguntei apontando para a pintura.
            -Ah sim, meu querido Bartolomeu...- Abafei uma risadinha e abaixei a cabeça para esconder o sorriso que, por muita sorte, tia Rose não viu. Parecia que naquela casa todos, menos minha tia, tinham nomes incrivelmente estranhos como condes e lordes de contos de fadas. Eucrácia e Pancrácia não demorariam para aparecer por ali...-             Ele era um ótimo homem sabe? Morreu cedo de um ataque fulminante... Eu o amava tanto! Gostaria de ter tido tempo para construir uma família, sabe? Adotar filhos e envelhecer ao lado de meu marido, essa casa andava muito solitária desde que ele faleceu. Ainda bem que agora você está aqui, minha querida...- Minha tia sorriu amigável.
            Senti pena da perda que tia Rose sofrera. Ela realmente parecia ter amado Bartolomeu... Pelo o que mamãe me contara, eles haviam tido um caso de amor proibido onde os pais dele proibiram o casamento e eles tiveram que fugir para Paris para se casar, ficaram hospedados a casa de tia Abigail e seu marido. Fofo não? Fugir para a cidade do amor apenas para viver um romance proibido? E tia Rose se adaptou muito bem à vida luxuosa do marido, já que agora era uma madame completamente refinada. Ninguém jamais poderia dizer que ela já fora uma garota do interior que vivia em uma fazenda e criava vacas e galinhas.
            Os olhos de tia Rose  voltaram de sua viagem ao passado e desviaram-se do retrato de Bartolomeu.
            - Vamos jantar, minha querida. Se continuarmos a olhar a comida ela vai esfriar!- Tia Rose riu sozinha da própria piada e serviu-se de um pouco de pernil.

domingo, 6 de novembro de 2011

Lyra Foster

                  Capítulo Um

                             Vou morar com uma estranha

            Minha mãe me entregou a última caixa que estava cheia de livros para colocar no caminhão.
            - Não faltou nada?- Perguntei enquanto ajeitava a caixa de forma que não caísse durante a viagem.
            - Nada que eu não possa levar depois.- Minha mãe sorriu. Desci do caminhão e segurei suas mãos ressecadas.
            - Mamãe, você sabe que tem que ficar para trabalhar e cuidar da Sarah, não é? Não se preocupe, eu venho lhe visitar nas férias, e isso não vai demorar muito!-Respondi sorrindo e tentando disfarçar o fato de que estava tão aflita quanto ela.
            Eu estava com medo do que poderia acontecer na cidade nova. Sim, eu iria me mudar para uma cidade pequena, onde apenas pessoas muito ricas moravam. Minha tia avó Rose havia conseguido uma bolsa para mim em uma escola particular naquela cidade onde ela vivia e, como minha mãe nunca havia tido condições de pagar uma escola de tal nível para mim, chegamos a conclusão de que seria bom para mim estudar durante todos os 4 anos do ensino médio em uma escola melhor. Por isso eu estava me mudando. Apenas eu, sozinha, para a casa de uma tia avó que eu não via desde os 6 anos de idade e já não me lembrava direito nem sequer de seu rosto, quanto mais de seu jeito de ser. Mas eu não podia parecer nervosa com toda a situação, tinha que pensar na minha mãe, ela também estava preocupada com minha ida até Fewvan, a cidade onde minha tia avó morava.
            - Lyra!- Ouvi Sarah chamar meu nome. Minha irmã mais nova veio correndo em minha direção segurando um coelho rosa de pelúcia. - Lyra, você vai deixar o Fofuxo aqui?
            - Fofuxo? Você deu um nome para ele Sarinha? Na minha época ele se chamava Senhor Bigodes, mas se você prefere Fofuxo... sim, ele vai ficar aqui.- Me abaixei e segurei o coelho que minha irmãzinha carregava. Quantas lembranças eu tinha com aquele ursinho de pelúcia. Mas agora eu estava deixando tudo aquilo para trás, era hora de recomeçar, largar a infância e começar a minha adolescência. Eu tinha que agir como uma garota mais madura do que minha irmã, mesmo que minha vontade fosse levar o coelho junto comigo.
            - Ele vai sentir saudade de você!- Ela disse baixinho, mas olhando fixamente para a pelúcia em minhas mãos.
            - Não, ele não vai não. -Me abaixei um pouco mais para fica na altura dela.- Ele não vai sentir minha falta porque você vai cuidar dele para mim.
            - É sério? Você vai me dar o Fofuxo?
            - É sim.- Entreguei o coelho para ela outra vez e me levantei.- Agora é melhor eu ir indo... Bernardo já está ficando impaciente.
            - Claro, claro...- Minha mãe olhou para mim e forçou um sorriso. Vi uma lágrima escorrer até sua bochecha antes dela passar delicadamente um dos dedos para secá-la.
            - Nos vemos logo, mamãe.- Dei um abraço e um beijo de despedida em minha mãe, baguncei os cabelos castanhos de minha irmã e entrei no caminhão.
            Teríamos uma viagem grande pela frente, tive sorte de meu tio estar indo para aqueles lados e concordar em me dar um carona. Respondi o "finalmente" de meu tio com um sorriso sarcástico, coloquei os fones de ouvido no volume máximo e apoiei minha cabeça na janela do caminhão. Eu não queria ver minha casa ficando para trás, mas precisava entender a realidade e aquela pareceu ser a melhor maneira. Meu tio e  eu não éramos realmente amigos, eu até desconfiava que minha mãe houvesse pagado para ele me dar uma carona ou algo do gênero, porque ele jamais se ofereceria para me ajudar em nada. "Cerca de 12 horas até Fewvan" minha mãe havia me dito na noite anterior. Talvez se eu dormisse um pouco... não, eu não conseguiria dormir nem se passasse a viagem inteira ouvindo música clássica ou um político falando. Estava muito preocupada com meus problemas. Na verdade, estava preocupada com a solução dos meus problemas que consistiam na mudança de cidade.
            Concentrei-me na música que ecoava em meus ouvidos e logo me vi perdida em meio a devaneios distantes. Pensei em tudo o que estava deixando para trás, nas amigas tão queridas com quem eu havia passado toda a infância, havia sido tão difícil me despedir delas, nos professores chatos que fazíamos piadas e dávamos apelidos secretos, nos professores divertidos com quem eu me dava tão bem, no cachorro Tobby , vira-latas que fazia parte da família há tanto tempo, no quarto que eu dividia com Sarah desde que ela nascera e virara um "parasita adorável" no meu ambiente natural, na casa pequena e apertada que eu costumava chamar de lar e, principalmente, pensei em minha mãe. Como ela estaria se sentindo agora? Será que conseguiria cuidar de Sarah sozinha? Meu pai morreu quando eu já tinha 9 anos e consegui ajudar minha mãe a criar Sarah, mas agora elas estavam sozinhas, mamãe já não poderia mais trabalhar tanto, teria que cuidar da filha pequena. Eu não sabia se ela conseguiria, quando eu nasci papai ajudou na minha criação. Pelo menos até meus 9 anos. Mas Sarah ainda tinha apenas 5 anos... Era difícil não me preocupar com a tudo isso. E, além do mais, eu sentiria muita falta delas. Sarah era uma menininha irritante e eu era uma garota de 14 anos que desejava muito ter uma vida social um pouco diferente de cuidar da irmãzinha e minha mãe trabalhava demais, mas nada disso importava mais. Eu sentiria falta da vida que levava com minha família, tudo seria muito diferente agora.
            -Lyra, vamos almoçar nesse restaurante. Sua mãe te deu algum dinheiro?- Meu tio me perguntou enquanto estacionava o caminhão perto de um restaurante muito pequeno e pintado de azul. Incrível que já fosse meio dia, havíamos saído às 6 da manhã! Agora faltavam apenas 6 horas...
            - Sim, sim.- Respondi, logo depois que saí do meu transe.- Ela me deu algum dinheiro.
            - Melhor que seja o suficiente para você almoçar. Não quero pagar nada pra uma menininha mimada como você.- Concordei com a cabeça, mesmo que minha vontade fosse matar meu tio enforcado. Eu ainda precisava de carona até Fewvan.
            Desci do caminhão e segui meu tio até o buffet do restaurante. Era a típica comida de caminhoneiro: arroz, feijão, bife acebolado, polenta frita, um pouco de repolho, tomate  e ovos fritos. Não era exatamente o  que eu mais gostava de comer e eu não estava com muita fome, então coloquei apenas um pouco de arroz e uma rodela de tomate no prato.
            - Vai comer só isso, sua praguinha?- Perguntou meu tio enquanto montava o
"segundo andar" do seu prato gordo.
            - Vou- Respondi friamente
            - Ótimo, pelo menos assim o dinheiro é suficiente para pagar.- Respondeu ele antes de voltar a colocar uma terceira camada de feijão no prato. Revirei os olhos e fui até uma mesa vazia.
            Me forcei a comer um pouco mesmo que a fome se distanciasse cada vez mais de mim. A viagem seria longa e se eu desmaiasse por falta de comida era possível que meu tio me deixasse em algum ponto perdido no acostamento para alimentar os abutres da região. Cutuquei a porção de arroz com a ponta do garfo, mas não me animou muito a comer.
            - Vai começar de frescura?- Meu tio falou batendo na mesa quando foi se sentar.
            - Só não estou com muita fome.
            - Agora que pagou vai comer, quero esse prato limpo de um jeito que ninguém precise lavar depois.- A ideia de o prato não ser lavado me fez observar um pouquinho os cantos vazios do meu, mas estavam limpos. Depois meu tio resmungou alguma coisa que eu não entendi e começou a comer. Ele lembrava muito um porco faminto.
            Consegui comer a rodela de tomate e depois o arroz não foi tão difícil. Impressionantemente, quando eu terminei de comer minha pequena porção de comida, meu tio já havia tomado toda sua lata de cerveja e terminado seu monstruoso prato de "três andares".
            - Não sei como sua mãe te aguentava. Esse deve ser o motivo da Rose ficar com você agora. Sua mãe não conseguia mais olhar pra essa sua cara todos os dias.- Mil e uma respostas passaram pela minha cabeça naquele momento. Meu tio estava abusando da ideia de que agora eu não podia responder para ele. Apenas abaixei a cabeça e fiquei formulando planos mirabolantes para assassinar o homem que dirigia o caminhão. Bernardo era o tio mais irritante do universo!
            Voltamos para o caminhão e, como antes, meus fones de ouvido foram minha passagem direta para o além.
            Agora eu pensava em como seria a vida em Fewvan. Minha tia provavelmente seria o tipo de pessoa que diz "Oh minha querida, você cresceu tanto! Lembra de mim? Eu te dei aquela boneca no natal quando você tinha 6 aninhos!". Eu não me lembrava de minha tia avó Rose. Nada. Absolutamente nenhuma imagem surgia em minha cabeça quando eu tentava lembrar de tia Rose. Eu imaginava uma mulher de estatura mediana, talvez um pouco mais alta do que eu, olhos verdes como os meus e cabelos grisalhos, roupas não muito simples considerando a localização de sua casa e uma aparência um pouco mais cansada do que minha avó quando faleceu. Tia Rose, segundo minha mãe, era 3 anos mais velha que minha avó. Minha avó falecera havia 4 anos, eu ainda me lembrava bem dela, morreu jovem, com apenas 62 anos de idade. Ainda me lembrava das histórias que ela contava sobre sua infância humilde na fazenda, sobre os animais que eles criavam lá, sobre a escola da época e em especial sobre as aventuras que vivia com suas três irmãs: Rose, Abigail e Liz. Abigail casou-se com um francês e mudou-se para frança quando completou 19 anos e Liz herdara a fazenda dos pais. Rose se casara com um bancário muito rico e, com toda a certeza, fora a que se dera melhor na história. Agora, já viúva e com 65 anos, Rose herdara toda a fortuna do marido, já que eles nunca tiveram filhos ou qualquer outra pessoa para deixar a herança. Tia Liz e minha avó continuaram muito próximas mesmo depois dos respectivos casamentos, portanto eu conhecia bem minha tia avó. Abigail nunca aparecera para visitar a família, a não ser, dizia minha avó, quando minha mãe nasceu. E tia Rose aparecia em alguns natais aleatórios, apenas para lembrar a família que sua vida continuava intacta, mas eu realmente não me lembrava dela.
            Minha mãe disse, antes de eu ir embora, que tia Rose era uma mulher generosa e muito carinhosa com os sobrinhos, e que com toda a certeza me receberia bem. Eu, ainda assim, estava com medo de como seria a recepção na nova moradia. Tia Rose, provavelmente, seria muito diferente do que eu imaginara. Ou não. Minha nossa, porque a memória me falhava! Nem um misero flash de memória vinha para me permitir uma ideia de quem seria minha "nova mãe". Pensando assim, parecia que eu estava sendo adotada. Será que minha tia tinha um cachorro? Eu sentiria falta de Tobby se não houvesse nenhum outro cachorro por lá. Mesmo se houvesse... meu vira-latas sempre companheiro faria falta. E os vizinhos? Teria algum amigo na vizinhança? Será que tia Rose tinha um quarto sobrando para mim? Ou eu dormiria no sótão? Como seria a escola nova? Será que eu iria me adaptar com novos colegas e novos professores? As perguntas não paravam de girar na minha cabeça e se continuasse assim eu iria enlouquecer até chegar em Fewvan.
            Olhei para o meu relógio em meu pulso. Minha nossa, o tempo estava passando rápido! Não restava nem meia hora de viagem. Meu tio olhava fixamente para a estrada e provavelmente ouvia alguma música brega dos cantores prediletos dele. Tirei um dos fones de ouvido e confirmei minha suposição.
            -Lyra, Rose ligou. Ela disse que vem te buscar no aeroporto. Pelo menos assim não tenho que entrar naquela cidade, odeio o jeito que as pessoas olham para mim por lá. Se prepare que chegamos lá em 10 minutos.- Assenti com a cabeça e, de repente, felicidade e medo inundaram meu ser.
            Em poucos minutos eu veria tia Rose, a estranha que agora seria minha tutora, e logo em seguida conheceria a casa onde passaria os próximos 4 anos. 4 anos... Era tempo demais. Faziam 4 anos que minha avó havia morrido, 4 anos eram quase uma vida. Eu passaria uma vida na casa de tia Rose.
            De repente, meu tio freou o caminhão.
            Ele abriu a janela e passou a falar com alguém que eu não conseguia enxergar de onde estava, provavelmente era um pessoa baixa.
            -Bernardo! Quantos anos, não é?- Uma voz feminina, aparentava pertencer a uma mulher de cerca de 50 anos.- Lyra está aí com você?
            - Sim, ela está aqui do meu lado.
            - Oh, que maravilha! Peça para ela descer, por favor.
            - Lyra,- Começou meu tio, agora em um tom muito mais educado do o habitual- Rose está pedindo para você descer.
            - Minhas coisas estão lá atrás.- Respondi, desconfiada com o tom educado de meu tio.
            - Não se preocupe, ela deve ter trazido alguém para ajudar a carregar.
            Abri a porta do caminhão e desci. Havia um jovem ruivo com cabelos cacheados e muitas sardas parado bem a minha frente. Ele aparentava ter cerca de 16 anos, era alto e sua pele era muito pálida, evidenciando as olheiras não muito profundas. Sorri para ele e ele sorriu de volta, estendendo a mão para mim.
            - Me chamo Sebastião.- Ele disse, mantendo um sorriso simpático.- Posso ajudá-la com seus pertences?- Não pude deixar de rir com o jeito engraçado dele de falar.
            - Prazer Sebastião, me chamo Lyra. Adoraria que você me ajudasse, obrigada. Estão atrás do caminhão.- Apertei a mão do rapaz e ele pareceu se surpreender um pouco com o meu jeito de falar, e até deu uma risadinha, mas logo recuperou a postura.
            Sebastião vestia uma camisa pólo branca, calça e sapatos sociais pretos e tinha uma postura impecavelmente reta. Parecia ser o mordomo. Ou apenas um garoto do colegial que precisava de um dinheiro extra.
            - Lyra! Quanto tempo minha querida!- Foi assim que tia Rose apareceu para mim pela primeira vez.
            Ela era realmente baixinha, provavelmente batia na altura dos meus ombros, tinha cabelos volumosos, negros e muito bem escovados, olhos azuis acinzentados muito claros e sua pele não tinha uma ruga sequer graças, provavelmente, ao efeito de muitas plásticas bem feitas. Eu jamais daria para ela a idade que tinha, poderia dizer, no máximo, 50 anos. Ela usava um vestido branco justo que terminava logo acima dos joelhos, um bolero preto para proteger do frio inexistente, unhas que eu logo reparei o quão bem feitas estavam, pintadas de vermelho sangue, e um sapato de salto médio com um laço de bolinhas brancas e pretas em cima. Ela também tinha uma maquiagem leve, apenas um batom vermelho, rimel preto, lápis nos olhos e um pouco de blush, nada muito carregado. Ela era uma linda senhora. Estava sorrindo e seu rosto passava uma paz impressionante.
            -Oi... tia Rose.
            -Lyra, por favor, me chame só de tia. Ou de vó! Queria tanto ter um neto, sabe?- Ela piscou para mim.- Bem, de qualquer forma, venha aqui me dar um abraço, Sebastião já está colocando suas coisas no carro.
            Ela se aproximou de mim e  me deu um abraço apertado. Tia Rose cheirava a lavanda. Provavelmente eu estava cheirando como tio Bernardo e aparentava uma médica plantonista que trabalhou sem parar por 48 horas, pois tia Rose olhou para mim, torceu o nariz de leve e sorriu outra vez.
            - Vamos, minha querida- Ela recomeçou.- você deve estar cansada e querendo um banho e uma cama confortável para dormir, não é? Vai adorar seu novo quarto.
            Segui tia Rose até o volvo que nos esperava na frente do aeroporto. Sebastião estava terminando de colocar a ultima caixa no porta malas. Eu ia abrir a porta de trás do carro, mas Sebastião me impediu e abriu para mim. Pelo jeito, a vida em Fewvan era muito diferente da que eu estava acostumada. Entrei no carro e tia Rose entrou logo em seguida e sentou-se ao meu lado. Sebastião fechou nossa porta, em seguida o porta malas e entrou no banco do motorista. Ou ele havia aprendido a dirigir fazia pouco tempo ou eu calculara a idade dele errado...
            Sebastião ligou o carro e seguiu para longe do aeroporto, em direção a minha nova cidade, a meu novo... lar.
            -Então querida, você está com que idade mesmo?
            -14 anos...
            -Ah sim, idade de ouro! E está um linda menina.- Ela olhou para minhas roupas e torceu o nariz outra vez.
            -É, minha mãe não tinha muito dinheiro para comprar roupas mais bonitas.- Senti meu rosto corar.
            - Isso não é um problema. Veja só, amanhã podemos ir comprar roupas novas para você, o que acha? E aproveitamos para comprar seu material escolar! Fazem muitos anos que não vou comprar materiais escolares.
            -Tem certeza, tia? Não quero incomodar...
            -Imagine! Sempre quis ter uma filha sabe? Para poder comprar roupinhas lindas e levar na manicure, mas nunca pude engravidar. Agora que você está aqui, vou me aproveitar para comprar muitas coisas para você, está bem? Afinal, amanhã é seu ultimo dia livre,, as aulas começam na segunda feira.
            Deus do céu, minha tia tinha razão! As aulas começavam na segunda feira, e já era sábado! Eu havia pensado em tantas coisas no caminho e nem mesmo imaginei a volta as aulas, não lembrei da proximidade da data. Eu não tinha nada para levar... ainda bem que minha tia era realmente generosa.
            - Obrigada! Nossa, muito obrigada mesmo.
            - Não precisa agradecer,  anjinho. Ah, olhe lá, diga olá ao seu novo lar!